Lembram dos indicados ao Oscar de melhor filme de 2021?
Fonte: google imagens.
O filme “O som do silêncio” foi indicado em 6 categorias, levando a estatueta de “melhor som”. Que paradoxal, não é?! Ué! É sim! Levando em conta que o filme fala sobre surdez, silêncio e etc e tal. Ah, e também levou a de melhor edição.
Mas vejam aí, tanto tempo depois e somente agora venho falar com vocês da minha percepção sobre o filme. Afinal, eu sou surdo e foi no mais absoluto “silêncio” que eu o assisti. Bora lá?
Então, quem acompanha um pouco da minha vida sabe que a história tem lá um pouquinho de semelhança com a minha. Eu também fui/sou músico, só não fui baterista como o protagonista do filme. E não é nada agradável você vir do mundo dos sons e do nada ficar sem ele.
Gente, a sensação da perda, da falta do mundo dos sons é inenarrável, é avassaladora. Sei que cada um tem sua forma de expressar essa terrível sensação. Eu quase enlouqueci. Lembram lá do começo do filme quando o protagonista percebeu que já não escutava e foi para a frente do espelho fazer movimentos com a boca? Da mesma forma eu fiz. Ficava forçando, pressionando para ver se os ouvidos ficariam destapados. Na vida real, a situação é muito avassaladora. Você entra em choque mesmo. Como eu disse, cada um tem sua forma de reagir. A minha não foi muito legal. Talvez o protagonista pudesse ter tido a ideia junto com a equipe de tentar passar um pouco mais de realidade nesse momento, que é um dos cruciais na vida de quem já foi ouvinte e passa a ser surdo. Este momento é como um divisor de águas na vida do “novo” surdo. A partir daí, tudo será diferente, para sempre.
Outro ponto, é que tudo se passou no filme muito rápido e não houve uma divisão temporal didática para que nós surdos melhor pudéssemos compreender o contexto temporal dos acontecimentos do filme. Esse contexto é essencial e não somente para nós surdos. Ouvintes também precisam compreender que após o diagnóstico da surdez, todos precisam de um “tempo” para digerir a notícia e então, tomar decisões. Eu mesmo passei quase 1 ano para pode digerir. Em outras abas desse blog, já comentei que tive um início de depressão, justamente por não digerir a informação como deveria.
No filme esse momento de transição não foi explorado e na vida real cada família, cada pessoa surda que passa por este processo, entende perfeitamente o que eu estou dizendo aqui. Não ficou claro como surgiu a ideia de o protagonista visitar a comunidade para surdos. Vejam, repito, sou surdo, não dava de escutar, se algo foi falado de forma proposital no filme, em um jogo que mesclava ora áudios, ora silêncio. Só sei que isso acontecia, por leituras que fiz sobre o filme. Só percebi que a namorada do baterista conversava ao telefone e respondia.
Outro ponto muito interessante está na visita ao médico por primeiro que o baterista foi, apesar de ter sido uma rápida consulta e o médico pedir que ele retornasse outras vezes para melhor compreender o problema, de cara o médico já fala da possiblidade do Implante coclear. Assim, como na vida real, a maioria ou senão, todas as clínicas e hospitais, nunca nos dão a possibilidade da outra face da moeda, que é o conhecimento da cultura surda. Muito embora a personagem tenha esse contato depois, mas vale lembrar que não surgiu do médico essa alternativa. Há sempre um enobrecimento da surdez enquanto patologia e nunca uma concepção sócioantropológica, fazendo o outro perceber que é possível viver com suas diferenças.
Por várias vezes me identifiquei assistindo ao filme e quando isso acontecia era difícil de segurar as lágrimas. Até pensei por alguns instantes em desligar a TV e não continuar assistindo, por medo de com o filme eu reviver as mesmas dores do início da minha nova condição. Mas não, agora mais forte, dono de mim, da minha nova condição, consegui reviver o que se assemelhava à minha trajetória e sentir menos dores e cá estou, comentando com vocês, minha percepção.
Outro assunto de bastante pertinência, que embora possa parecer ter ficado em segundo plano no filme, está a participação do protagonista em questões próprias da comunidade surda. Assistindo alguns vídeos e lendo alguns textos sobre este filme, encontrei um material que segue, até certo ponto e de maneira velada, o estereótipo da surdez enquanto doença, passível de ser curada, contornada. E essa ideia falsamente é forjada na concepção errônea por alguns que interpretaram, em achar que o protagonista que passou a maior parte do filme desejando uma cirurgia, quando a teve, se deu por satisfeito e feliz.
Ou seja, alguns comentadores do filme, enfatizaram o uso do implante como o milagre da ciência para um surdo poder voltar a “ouvir”. Não, não é tão simples assim! Foi exatamente em comunidade que a todo instante a verdadeira mensagem do filme se passava. Foi na comunidade surda que residiu o verdadeiro espírito da causa da cultura surda como uma condição socioantropológica. O senhorzinho, gestor da comunidade para surdos, já no primeiro encontro com o protagonista, ao se apresentar, falou que perdeu sua audição quando, em guerra, uma bomba estourou próximo a ele e junto a audição, perdeu também sua família. Mas frisou que a perdeu “não por ser surdo”, mas por ser alcoólatra. Ainda em seu diálogo, deixou claro ao usar a fala mais ou menos assim, ao apontar o dedo para si e dizer que quem estava lá era para tratar a mente e não a audição. Isso é um processo de aceitação, de perceber que há inúmeras possibilidades, agora sem ouvir, de interagir com o mundo e com seus pares.
E vejam, isso é vivido pelo personagem que – embora por falha didática temporal, não tenhamos percebido o tempo – ele aprendeu a língua de sinais, que para isso ser possível é preciso de tempo e dedicação, e convivia perfeitamente em sociedade. Outro momento que fica bem clara essa mensagem do filme como enobrecimento dessa nova forma de interação com o mundo, mas a partir das mãos, está no retorno do protagonista para a comunidade. Já implantado, ele pede para ficar por lá por uns 4 dias até o implante ser ativado, quando o surdo responsável pelo local não o aceita, por infringir as regras e dentre elas, a principal: “a de que a surdez não precisava de conserto”.
Por tanto, o filme conta uma história bem parecida com a de boa parte de nós surdos, apesar de poder ter explorado muito mais. Mas deixando sempre a mensagem, inclusive no seu final, de que o senhorzinho surdo, responsável pela comunidade no filme, tinha razão, de que não vai adiantar consertar algo, quando a mente não vai nada bem.
Gostaria ainda de salientar que sei que existem surdos implantados felizes com seus implantes, mas estes também precisam saber que os surdos que não ouvem e são sinalizantes, também podem ser felizes e não necessariamente vivendo na angústia ininterrupta da busca pela cura, pelo consertar algo.