Olá, pessoal! Aqui estou eu novamente e depois de um longo tempo sem escrever no meu blog. Por primeiro, gostaria de agradecer aos meus leitores que desde meus primeiros escritos, são fiéis aos meus relatos por aqui. Como vocês sabem, o objetivo deste blog é educacional, não é instrucional. Vocês não vão encontrar por aqui, receitas, caminhos a serem percorridos, dando-lhes por certeza o destino ou resultado que encontrei. Mas muito do que houve comigo, do que acontece e ainda virá a acontecer, quase sempre é de alguma forma, vivenciado também por outros tantos surdos e suas famílias. Daí ser pertinente estar aqui vos relatando para que muitos equívocos sejam atenuados, como esse de agora que vos escrevo sobre surdez, fé e religiosidade.
Eu sempre fui engajado na minha religião. Sou católico, mas um que realmente servia/serve dentro da igreja. Fiz primeira-comunhão, crisma, participei de grupos de jovens e descobri meu dom e talento pela música. Passei a integrar grupos musicais da igreja como o amado CSC – Coral Santa Cecília, que por primeiro me acolheu e acreditou no meu talento. Depois fiz parte do Grupo Cítara, na paróquia de Santa Ana, onde também fui acolhido e além de compositor e vocalista, era o coordenador do grupo. Claro que nessa época eu ainda não era surdo.
Quando comecei a ficar completamente surdo, já quase perdendo totalmente a audição direita, comecei a ficar muito abalado, era o começo de uma depressão. Eu não aceitava estar ficando surdo. Mil coisas – para não usar a palavra preconceito – se passavam em minha cabeça, como já relatei em outras abas desse blog, do tipo de achar que estar surdo era uma sentença de morte, como eu ia viver assim? Como iria trabalhar, namorar, casar, proteger a mim e minha família, como voltaria a dirigir o meu carro, a interagir com minha família e amigos? Foi um misto de preconceitos e medos que por serem muitos, transbordou numa depressão. Mas mesmo sem muita força, me apeguei à minha religiosidade. Passei a frequentar grupos de oração, terços de cura e libertação e toda noite rezava o mesmo terço sozinho no quarto. Várias pessoas, dentro da igreja, como em minha família, passaram a me mostrar trechos da Bíblia com passagens onde Cristo cura surdos. No início aquilo me impulsionava a rezar ainda mais e assim como aquele surdo do Efatá, pedir com toda minha força para que meus ouvidos se abrissem também.
Durante um bom tempo, dentro da minha religião e da minha religiosidade, eu era impulsionado a correr atrás de um milagre, que seria uma cura, voltar a ouvir. Qual fosse a igreja e grupo de oração, lá eu estava clamando por esse milagre e persuadido a continuar me matando aos poucos, porque “se Cristo curou um surdo, ele pode te curar”, mas você precisa ter fé. Matando-me aos poucos porque concentrava todas as minhas forças em busca desse milagre e me anulava, não aceitava a minha nova condição e nem queria entendê-la. Então toda vez que eu saía da igreja e não voltava para casa curado, era porque eu não tinha fé o suficiente e me cobrava por isso, como um autoflagelo. Eu estava morrendo aos poucos, cobrava de Deus o milagre, quando dei por mim, já não era mais oração e pedido, era como se eu quisesse obrigar a Deus me curar. Eu tinha inveja dos das pessoas que em seus testemunhos tinham sido curadas, segundo elas. Por que elas e eu não? Por que elas são melhores do que eu? Será se eu era tão pecador assim, ao ponto de não merecer esse Efatá?
Aqui fora, o mundo é altamente preconceituoso e opressor contra as diferenças, nós surdos sofremos inúmeras discriminações por não fazermos parte daquilo que chamamos de “maioria linguística”, somos uma minoria linguística e há muito sofrimento para que leis sejam respeitadas e nossos direitos venham a nos ajudar. É uma guerra que travamos diuturnamente com o meio social que domina uma língua e cultura diferente da nossa. Então, ao vivenciarmos nossa fé e religiosidade, buscamos um acalento, de certa forma, buscamos nos refastelar, um lugar que nos acolha. E esse lugar deveria ser a nossa igreja. Mas infelizmente, algumas lideranças religiosas e leigos religiosos sem que percebessem, dentro da igreja me oprimiam também, quando pregavam/pregam ao dizer, até por vezes usando de eufemismos, que Cristo abre os ouvidos e se o meu continua fechado ou não sou merecedor desse milagre ou minha fé é pequena. Não mostravam que mesmo de ouvidos fechados, Cristo pode falar ao meu coração e me acolher do jeito que sou, surdo.
Vejam bem, não estou dizendo que Cristo Jesus não possa obrar esse milagre, o X da questão não é esse, tenho fé e acredito em milagres, tanto que afirmo sem medo algum que o milagre aconteceu, não o de eu voltar a ouvir, mas de aceitar minha nova condição e perceber todos os impasses políticos, sociais e ideológicos em torno da surdez e lutar em favor de dias melhores para as pessoas surdas, como eu.
Quantas vezes vocês viram surdos participando da missa, por aqui na minha cidade de Parnaíba – PI? Lembram lá quando eu falei que sempre fui engajado na igreja e era ouvinte? Mas nunca tive contato com surdos na minha igreja. Nunca presenciei um surdo sentado ali do meu lado e um intérprete lá na frente. Onde eles estavam esse tempo todo? Quando deixei de buscar o milagre que me afligia e aceitei o milagre que o próprio Cristo tinha para mim, o de abrir o coração e desconstruir inúmeros preconceitos, passei a me aceitar e a compreender que aquela era minha nova missão, a de tentar trazer mais surdos para a igreja, no sentido de que se antes não estavam presentes por falta de acessibilidade, por falta de reflexão no âmbito da igreja para acolher o surdo em sua totalidade, cultura e língua, como inúmeras vezes eu não era aceito depois de ser e estar surdo, agora eu deveria lutar para que isso venha a acontecer. E sem que desse por mim, depois de todo o processo de aceite, eu já era o coordenador da Pastoral do surdo na minha cidade e o projeto de uma igreja também para os surdos, era carinhosamente abraçado por nosso Bispo Dom Juarez, um dos idealizadores do atual curso de especialização e extensão em Catequese inclusiva com ênfase na surdez e na libras, o qual fui convidado para coordenar.
Não quero ser exemplo de mártir, a ideia não é essa, não é romantizar o sofrimento e sacraliza-lo, é tomar consciência e posse de minha nova condição e perceber todas as mazelas que um sistema altamente preconceituoso impõe sobre nós e não as aceitar. O objetivo é uma igreja com surdos conscientes da sua fé, do seu ser, agir e existir e que o outro surdo veja que isso é possível e que o próprio Cristo pode ecoar em nossos corações e por meio da língua de sinais, a promessa de justiça e paz.
Hoje, é mais fácil de ser encontrado um surdo na igreja católica de Parnaíba, fazendo catequese, em busca do matrimônio, do batismo, do que antes. Claro que muito ainda precisa ser feito e ainda sou muito falho na minha missão. Mas peço a Deus forças para que mesmo fraquejando, eu não venha a desistir.
Então é isso meu povo, aqui termino meu relato da aba Surdez, fé e religiosidade. Espero que algo que relatei vos sirva para algum aprendizado. Estou aberto para comentários e reflexões sobre esta postagem. Abraço em todos!