O ANTES DA SURDEZ
Falar sobre o antes de ficar surdo, não é tão fácil para mim pois, sou temeroso em fazer transparecer algum juízo de valor entre ser ou não ouvinte. Por esse motivo, deixo claro que meu discurso em todo o site é desprovido de qualquer que seja esta intenção. Mas falarei sobre este assunto, pois eu sim, como já tive audição, posso dizer que a perdi. Eu tenho a noção da perda. Porque só se perde aquilo que um dia você o teve. Se pararmos para refletir sobre isso que acabei de vos dizer, surdos congênitos e, embora só tenham perdido a audição na infância no início da aquisição de sua linguagem ou mesmo antes, estes, como supostamente não tiveram a audição ou o uso reflexivo dela, eles não têm noção da perda.
Para melhor enfatizar o que acabo de vos dizer, apresento um relato sobre esta questão. É muito importante que você leitor deste site leia realmente para melhor entender:
Padden e Humphies (1999) comentam um belíssimo relato, feito por Sam, um menino surdo, em seu contato com uma amiga ouvinte, que morava num apartamento ao lado do dele. Vejamos o relato abaixo.
Sam nasceu numa Família Surda, com muitos irmãos surdos mais velhos que ele e, por isso, demorou a sentir a falta de amigos. Quando ele começou a se interessar pela realidade fora do seu mundo familiar, notou, no apartamento ao lado, uma garotinha que tinha idade mais ou menos igual à dele. Após algum tempo, ficaram amigos. Ela era legal, mas tinha um problema: ele não conseguia conversar com ela como conversava com seus pais e irmãos mais velhos. Ela tinha dificuldade de entender até gestos muito simples! Como Sam e a menina não conseguiam se comunicar, ele começou a apontar para o que queria ou, simplesmente, puxava a amiga para onde ele queria ir. Ele imaginava como deveria ser ruim para a amiga não conseguir se comunicar, mas, uma vez que eles descobriram uma forma de interagir, ele estava contente em se acomodar às necessidades diferenciadas da amiga.
Um dia, a mãe da menina se aproximou e mexeu os lábios e, como mágica, a menina pegou sua casa de boneca e se afastou para outro lado. Sam ficou espantado e foi para casa perguntar a sua mãe sobre qual era exatamente o tipo de problema da vizinha. A mãe de Sam lhe explicou que a amiga dele, bem como a mãe dela, eram ouvintes e, por isso, não sabiam sinais. Elas falavam, mexiam seus lábios para se comunicar com os outros. Sam perguntou se somente a amiga e a mãe dela eram assim, e sua mãe lhe explicou que era a família deles que era especial, e não a família da amiga. As outras pessoas eram como sua amiga e a mãe dela. Sam não possuía a sensação de perda auditiva. Ele pensava que eram os vizinhos que tinham uma perda, uma falta de habilidade para se comunicar, e não ele e sua família. [Adaptado de]: SALLES, Heloisa et al. Ensino de língua portuguesa para surdos: caminhos para a prática pedagógica. Vol. 2. Brasília: MEC, SEESP, 2004. p. 36-38.
Agora me sinto mais à vontade em prosseguir meus relatos sobre “o antes da surdez”. Como na aba anterior citei sobre as questões de minha vida, tive inúmeras oportunidades que fizeram alargar o repertório da minha linguagem. Antes de ficar surdo, era somente a língua portuguesa que eu usava para me comunicar. Sempre fui um ótimo aluno da disciplina português, tinha facilidade em compreender e dominar o uso culto e coloquial da língua e, como antes mencionado, alarguei meu repertório. Tive oportunidade também de conhecer outras línguas como o inglês, espanhol, francês e até mesmo a Libras, mas claro, somente um conhecimento superficial, sem me ater a maiores aquisições.
Antes de perder a audição eu já havia conquistado autonomia em todas as circunstâncias, porque eu nunca fui podado. Meus pais desde cedo me impulsionaram a ir em busca daquilo que eu sonhava. Passei por todas as etapas: estudei bastante, como ainda estudo, era aprovado, já cheguei a ser reprovado, jogava bola, viajava a passeio, a trabalho, namorava, levava “fora”, fiquei noivo, me formei, passei em concurso, comprei meu transporte, tirei minha CNH, era religioso ao extremo e servia num grupo de canto, depois fui coordenador e vocalista de uma banda católica, compositor (veja uma de minhas composições:https://www.youtube.com/watch?v=RYx_ilhFRCE&t=148s ) poeta, até teatro eu cheguei a fazer.
Percebam que tudo o que acabei de relatar foi a vida sem limitações que um ouvinte poderia ter. Eu sempre fui encorajado a dá o melhor de mim. A me sobressair. Mas quando eu fiquei surdo, até mesmo antes de perder completamente a audição, minha vida mudou, (estou contando o que aconteceu, não o agora) eu fiquei completamente triste, tive início de depressão. Mas porquê? O motivo era somente este, porque o Michel Oliveira, laureado como o melhor aluno da faculdade no curso de Pedagogia, embora tendo cursado duas disciplinas voltadas para estas questões, eu não entendia nada sobre surdez. Para mim, naquele instante, ficar surdo era está fadado ao fracasso, eu falhei na vida, eu não poderia mais fazer nada, nem casar, nem andar sozinho, nem trabalhar, nem viajar. Era só esperar a morte chegar. Percebam pessoal, assim como eu, inúmeros pais de surdos veem seus filhos da mesma forma ou quase igual. Por excesso de amor, por não querer ver seu filho sofrer, pais vêm podando seus filhos, cortando suas asas. Eu, aquele garoto (que era ouvinte) criado acreditando em si, tive inúmeras conquistas. Mas e se eu tivesse nascido surdo, será que meus pais teriam me mostrado que eu posso tudo?
O fato foi que quando perdi minha audição, minha família não me via mais como aquele garoto vitorioso e cheio de vida. Também por excesso de amor, agora eu não podia mais nada. Foi assim que eles começaram a me ver, por conta de estar surdo e assim também eu me sentia, por mim e por eles me fazerem sentir. Percebam que conversarmos sobre o antes da surdez faz todo o sentido. Tem muito mais a ser relatado, agora será sobre o início, o descobrindo a surdez, vou falar do diagnóstico e de todas as questões entorno deste início. Sobre isso, cliquem na próxima aba chamada “Descobrindo a surdez (diagnóstico)” Espero vocês lá, abraço!